Estudo da USP identificou 'pontos cegos' da produção de conhecimento global sobre segurança do solo, dificultando soluções para mudanças climáticas e degradação ambiental

Pesquisa mal distribuída sobre saúde do solo dificulta o desenvolvimento de soluções locais - Foto: Georgina Smith/ciat/Flickr
Cresce o interesse sobre a saúde do solo e sua relação com as principais ameaças à saúde planetária. No entanto, regiões mais ameaçadas pelas mudanças climáticas e degradação ambiental têm pouca ou nenhuma pesquisa sobre o tema. Além disso, países da África e da Ásia que são mais vulneráveis a estressores ambientais – como extremos climáticos, seca, poluição e desmatamento – têm fraca cooperação científica internacional com os maiores produtores de conhecimento sobre a saúde do solo.
A constatação vem de um estudo liderado por pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e do Centro de Estudo de Carbono em Agricultura Tropical (CCARBON), ambos da USP. O levantamento, publicado na revista Communications Earth & Environment, do grupo Nature, analisou cerca de 32 mil artigos científicos disponíveis na Base Scopus sobre as principais ameaças ao solo causadas por crises ambientais globais. Os cientistas também mapearam onde as pesquisas estão concentradas a partir da afiliação dos autores.
Segundo o artigo, 60% das publicações científicas sobre saúde do solo foram desenvolvidas por apenas cinco países: China, Estados Unidos, Índia, Brasil e Espanha, respectivamente. Já África, América Central e do Sul (excluindo o Brasil), Oriente Médio e Sudeste Asiático foram considerados “pontos cegos”, devido à falta de publicações ou autores líderes em pesquisa sobre saúde do solo, biodiversidade e funções do ecossistema.
Os autores destacam que os pontos cegos estão localizados em regiões com o maior risco de extinção de espécies, e são fortemente impactados pelas pressões da mudança no uso da terra, o principal impulsionador das emissões de gases de efeito estufa. A falta de pesquisa nesses locais dificulta a criação de estratégias adaptadas localmente.
“Como podemos avançar em termos de segurança alimentar e combate às mudanças climáticas se as regiões do globo mais vulneráveis a estas ameaças são justamente as regiões com a maior carência de informações e menores investimentos em ciência?”, questiona Maurício Roberto Cherubin, professor da Esalq e primeiro autor do estudo, em entrevista ao Jornal da USP. Como consequência, ele aponta a baixa capacidade de gerar tecnologias capazes de reverter esse cenário dentro de um prazo ainda viável, “dada a urgência climática que vivemos”.
Solos saudáveis fornecem inúmeros serviços que sustentam a vida no planeta, permitindo que o solo produza biomassa, regule o estoque de carbono, proporcione hábitat adequado para a biodiversidade, circule nutrientes e gerencie a água de forma eficaz. Essas funções são cruciais para manter o equilíbrio do ecossistema, apoiar a produção de alimentos, aumentar a resiliência climática e garantir a sustentabilidade a longo prazo. Estudos recentes indicam que um terço dos solos do planeta estão degradados.
Ciência urgente e emergente
A produção científica mundial sobre saúde do solo cresceu significativamente na última década, com 52% dos artigos publicados nos últimos cinco anos e 74% nos últimos dez anos. Apesar da alta produtividade, o campo é considerado emergente desde a década de 2010, com conceitos e metodologias ainda passando por revisão.
Se de um lado a ciência demanda tempo, de outro a busca por soluções exige pressa: tanto para minimizar crises ambientais agravadas pelas mudanças climáticas quanto para conciliar a produção agrícola com a proteção ambiental. Mas as regiões indicadas como pontos cegos pela pesquisa são ainda mais delicadas por estarem localizadas nos trópicos.
“Na América Central e do Sul, África, Sudeste Asiático e Oriente Médio, a temperatura aumentará significativamente, e com isso, haverá um aumento dos eventos extremos, por exemplo, estiagens mais prolongadas e intensas, enxurradas com maior potencial erosivo e ondas de calor”, explica Cherubin.
O pesquisador aponta para a sobreposição de vulnerabilidades, por se tratarem de regiões com países pobres e de menor estabilidade política. Nesse ritmo, ele acredita que estas regiões terão cada vez menos capacidade de investimento para desenvolver e implementar estratégias de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Para o agrônomo, a restauração da saúde do solo depende de pesquisas que deem sustentação científica aos países mais afetados.
“A falta de ciência de saúde do solo é um agravante, pois solos mais degradados tornam-se mais vulneráveis, gerando reduções na produtividade. E solos que produzem menos aceleram a degradação, criando-se um ciclo vicioso e difícil de reverter” – Maurício Cherubin
Com Estados Unidos e China liderando a produção científica e as citações, o estudo sobre a saúde do solo pode gerar dados genéricos e aplicações inadequadas para as realidades locais. É o caso de Brasil e Indonésia, que se destacam com as maiores taxas de desmatamento, mas figuram em 4º e 19º lugar, respectivamente, na lista de países ranqueados por produção científica. Para além da posição, os países também podem estar mais ou menos vulneráveis à erosão, à perda de biodiversidade e mudanças climáticas.
“Soluções adaptadas às regiões mais vulneráveis dependem de lideranças de pesquisas locais, capazes de encontrar quais as melhores práticas de manejo da saúde do solo. A simples transferência de conhecimento e tecnologias de outras regiões, normalmente países da Europa ou Estados Unidos, é um processo mais lento e, na maior parte dos casos, pouco efetivo”, afirma o pesquisador.
Ao analisar as publicações e redes de conexões entre autores o estudo criou ainda uma lista de autores mais produtivos na área. No top-5 dos pesquisadores mais produtivos do mundo estão Rattan Lal (Universidade de Ohio), Douglas Karlen (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), Maurício Roberto Cherubin (Esalq/USP), Davey Jones (Universidade de Bangor) e Carlos Garbisu (Instituto Vasco de Investigação e Desenvolvimento Agrário). A lista completa do top-100 pesquisadores está disponível no site da USP.
“Ser listado como um dos cientistas mais produtivos da área é motivo de orgulho, pois demonstra claramente a alta capacidade científica que temos em nosso grupo de pesquisa, e também reforça para a comunidade internacional que o Brasil é um polo de ciência em saúde do solo”, afirma Cherubin.
Tanto ele quanto os demais autores do estudo destacam a necessidade de fortalecer as lideranças locais e promover oportunidade para que novas lideranças científicas surjam nas regiões menos representadas.
Agenda nacional
Para Cherubin, o Brasil se destaca na produção de conhecimento, mas ainda precisa avançar na aplicação para alcançar a resiliência climática. “Trata-se de algo complexo, mas a saúde do solo deve ser priorizada nas agendas nacionais como fizemos com a Brazilian Soil Health Partnership, uma aliança para promover a saúde do solo nas diferentes regiões [do País]”, aponta. Além de facilitar o trânsito científico entre parceiros, a aliança quer definir protocolos uniformizados para avaliação da saúde do solo, já que diferentes locais no Brasil podem adotar variados critérios no manejo do uso da terra.
Outra solução apontada pelo professor é o desenvolvimento de ferramentas de análise do solo que não dependam de análises laboratoriais caras e complexas. Seu grupo de pesquisa, denominado Manejo e Saúde do Solo (SOHMA, na sigla em inglês) criou uma dessas: o SOHMA kit. “É uma ferramenta para ser usada no Brasil e no mundo, particularmente em regiões com menor investimento, por se tratar de um kit barato e de uso diretamente no campo”, explica Cherubin.
Mais informações: cherubin@usp.br, com Maurício Roberto Cherubin